O alarme já tocava no volume máximo. Ela havia dormido demais. Acordou num sobressalto, desceu da cama com o pé esquerdo, e quando se deu conta disso já era tarde pra tentar consertar. Abriu as cortinas e o sol lhe ofuscou os olhos, que ardiam, talvez por ter passado muito tempo no escuro, ou por ter chorado demais antes de dormir. Atrasada, correu pro banho, no caminho, tropeçou num chinelo e bateu o cotovelo na quina da porta. Apressada, passou o condicionador no lugar do shampoo. Perdeu mais tempo ainda. Escovou os dentes mas errou na força e no jeito, bateu a escova forte demais na gengiva, que imediatamente sangrou. Respirou fundo. Não adiantava mais correr, já estava atrasada mesmo. Foi tomar um iogurte antes de sair de casa, tomou metade num gole, e só aí sentiu um gosto estranho, estava fora da validade. Mais uma vez, tarde demais pra tomar uma atitude, começou a torcer pra não passar mal. Correu e conseguiu pegar o elevador, mas a porta bateu com a chave ainda dentro. A porta não abria por fora, o jeito era chamar um chaveiro mais tarde. Mais tarde, porque agora tinha que ir trabalhar. O elevador enguiçou. O zelador chegou em 10 minutos, até rápido, mas ela teve que descer os 11 andares de escada.
Pegou um ônibus cheio, e foi. Chegou à repartição em que trabalhava, e viu tudo fechado. Perguntou ao segurança o que havia acontecido. O time da pequena cidade foi campeão, o prefeito decretou feriado pra população comemorar. Lamentou ter passado a noite chorando, sem ligar a televisão. Se ela tivesse amigos, certamente um deles ligaria pra avisar, ou pra chamá-la pra sair e comemorar a tal vitória. Mas não era o caso, ela não tinha amigos. Foi andando até o ponto de ônibus, e só aí se deu conta da quantidade de gente com a camisa do time pelas ruas. O ponto ficava ao lado de uma banca de revistas, e enquanto esperava pra voltar pra casa, folheava uma revista de horóscopo. Aproveitou pra ler o que os astros previam para seu signo. Felicidade plena, momentos de descontração, realização profissional, um grande amor e sorte no jogo. Este deveria ser o momento dela, o astral dizia que seria um excelente mês para os aquarianos. Fechou a revista, subiu no ônibus e voltou pra casa.
O elevador ainda estava quebrado. Começou a subir as escadas já com preguiça. Lá pelo sétimo andar, lembrou que precisaria chamar um chaveiro, mas não tinha o telefone de nenhum. Desceu, pediu ao porteiro que lhe conseguisse um. Subiu as escadas e esperou mais de uma hora pelo rapaz, sentada no chão do corredor. Quando ele chegou, o elevador já funcionava normalmente.
Em questão de minutos, uma chave nova estava pronta, e ela entrava em casa sem um real na bolsa. O serviço custou o dobro do que deveria, afinal, era feriado. Tentou voltar a dormir, em vão. Ligou a televisão, foi até a cozinha, pegou um copo de suco, uns biscoitos, e na volta, tropeçou no tapete da sala. Como não poderia deixar de ser, o suco acabou caindo na televisão que pifou em poucos segundos. Nada mais previsível para aquele dia.
Desistiu de comer, e não sabia mais o que fazer. A culpa era do pé esquerdo, só podia ser.
Sem amigos, sem televisão, não sabia como ocuparia o resto daquele dia que estava só começando. Lembrou que tinha uns livros juntando poeira na estante, resolveu espaná-los pra ter o que fazer. Como era de se esperar, um deles - o mais pesado - caiu. Bateu primeiro na cabeça, depois no pé. Desistiu. Aquele realmente não era um bom dia. O mês começou mal. Aquilo estava muito errado, afinal, ela era aquariana! Começou a imaginar o que mais poderia acontecer dali pra frente. Começou a encher a banheira, enquanto procurava aquele remédio pra enxaqueca, que baixava a pressão e dava sonolência. Era do que ela estava precisando.
Entrou na banheira cheia e tomou duas caixas do remédio. Se a tendência era piorar, resolveu cortar caminho. Enquanto esperava, pensava se morreria por causa dos remédios ou afogada. Pensava quanto tempo levaria pra alguém notar sua falta. Seria o porteiro? Algum colega? O caixa da padaria? Aos poucos os pensamentos foram se perdendo na escuridão, e antes de morrer, achou engraçado não ter visto o tal filme que dizem que passa na cabeça das pessoas quando estão morrendo. Pensou que se tivesse saído da cama com o pé direito talvez o filme passasse e ela conseguisse lembrar de alguma coisa interessante... mas agora já era tarde demais. A última coisa que passou por sua cabeça foi que o começo de sua história nunca seria conhecido. Não que alguém fosse se interessar, mas...